Desde a Idade Média
Segundo Giuseppe Tavani,
A questão da ortografia é um dos capítulos mais atormentados da história linguística portuguesa. Ao contrário do espanhol, que nos fins do século XV encontrou em Nebrija o seu codificador tanto da grafia como da gramática, e mesmo do italiano que, após diversas vicissitudes, acabou por receber forma gráfica definitiva entre o século XVII e o XVIII, o português manteve até ao princípio do século em que estamos uma grafia tradicional inspirada em etimologias um tanto arbitrárias. (…) [A]inda hoje, a despeito das numerosas reformas que se sucederam em setenta e seis anos, não estamos em condições de dizer que a situação se tenha tornado absolutamente clara.1
Este pormenor é interessante: que Portugal demorou mais tempo a agir sobre a ortografia. Não porque tenhamos de nos comparar com outros, mas porque nos mostra que, numa perspectiva história, este assunto é recente na conversa pública.
Tivemos, segundo Tavani, três períodos na história da ortografia. Na Idade Média, privilegiávamos a fonética, aproximando a escrita e a pronúncia. Para esta língua em formação, os escribas procuravam representar, como melhor podiam, «sons que não tinham existido em latim». Infelizmente, não havia acordo entre eles nem uma tradição escrita, e a variedade criou incongruências.
No Renascimento, privilegiámos a etimologia, debruçando-nos sobre a origem das palavras e ressuscitando consoantes do latim e do grego: fructo, theatro, phrase.2 Fizemo-lo, provavelmente, para seguir a ortografia francesa, ainda hoje muito etimológica;3 e para nos distanciarmos da ortografia espanhola, que se inclinava para a fonética. Ressurgiram mesmo sons desaparecidos, alguns dos quais ficaram (como o g em digno). Noutros casos, pusemos consoantes onde nunca tinham existido: por exemplo, em thesoura (que, na sua origem latina, nunca teve um h — «o étimo é tonsoria»). O foco na etimologia manteve-se até ao início do século XX, quando a corrente voltou a mudar.
Há pouco mais de cem anos, embarcámos na travessia das reformas ortográficas. Regressámos à tendência fonética da Idade Média com a reforma de 1911, de Gonçalves Viana, lançando ao mar theatros e abysmos, e entrando num período particularmente «atormentado» quando tentámos atravessar com ela o oceano. 
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Giuseppe Tavani, «Antecedentes históricos: a ortografia da língua portuguesa», em A Demanda da Ortografia Portuguesa. ↩︎
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Não fomos os únicos a fazê-lo: o inglês teve o mesmo movimento. É assim que, ainda hoje, o que antes era «fleme» se escreve «phlegm», segundo a linguista Arika Okrent, num episódio de 99% Invisible, «Corpse, Corps, Horse and Worse». Parafraseando a rainha D. Isabel, «são modas, senhor». ↩︎
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De forma semelhante ao inglês, o francês não ajusta tanto a ortografia à fonética (a forma como pronunciamos as palavras em dada altura). Consequentemente, tem hoje muitas vogais e consoantes mudas (e
st, respirent, Paris). ↩︎